quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

A quem servir?

O lema da Campanha da Fraternidade deste ano, “Vocês não podem servir a Deus a ao dinheiro”, parece ser uma afronta ao mundo globalizado, consumista e hedonista no qual vivemos. Num primeiro momento a Igreja parece radicalizar, numa posição inconciliável com os apelos da realidade que vivemos no cotidiano.
Precisamos de dinheiro. Lutamos e nos sacrificamos no trabalho, por ele. Ele pode significar nossa independência, autonomia, liberdade. Permite acesso a bens que nos garantem conforto, segurança, sobrevivência.
Por outro lado, sabemos bem que a posse de bens materiais não é certeza de felicidade. O dia a dia está cheio de exemplos de pessoas que “tem tudo” e vivem frustradas, infelizes, amarguradas.
É possível encontrar um equilíbrio?
Ouvindo algumas críticas ao tema da Campanha da Fraternidade desse ano, cresceu em mim o desejo de compartilhar uma reflexão que tenho feito sobre certos conceitos, como o de riqueza, ou de “homem rico”, tal como os percebo nos textos bíblicos.
A meu ver, Jesus não tem problemas com a riqueza. Não a vê como um mal em si. Muitos amigos de Jesus eram pessoas de posses. José de Arimatéia, Nicodemos, o próprio Zaqueu. Entre os discípulos, temos Mateus, que por sua profissão de cobrador de impostos, certamente era um homem rico.
É comum encontramos Jesus à mesa com pessoas que se destacavam naquela sociedade, inclusive pelo patrimônio que possuíam. Ter ou não ter bens não era o critério de Jesus para estabelecer uma relação amistosa com essas pessoas.
Volto à sabedoria dos antigos, a palavras que ouvi, ainda menino, da boca da minha avó: “O dinheiro é um excelente empregado, mas um péssimo patrão...”. Ou seja, a questão não é possuir riquezas, mas “ser possuído por elas”.
O escritor Nelson Rodrigues conta, numa crônica, o encontro que teve no Rio de Janeiro com um banqueiro a quem foi pedir um empréstimo. O homem fora companheiro de infância de seu pai, em Pernambuco, de onde migraram para fugir da miséria. Na capital, enriqueceu. O banqueiro negou o empréstimo e humilhou o escritor. Nelson saiu do encontro pensativo: “Ele saiu da fome, mas a fome não saiu dele...”
No evangelho, e acho que também na vida, pois o evangelho É vida, o que determina o conceito de riqueza não é a contabilidade dos bens que possuímos, mas a maneira como nos relacionamos com eles. Há exemplos...
Sob um viaduto, na cidade grande, um mendigo agride outro mendigo por causa de um cobertor surrado. Do outro lado da rua, um banqueiro manipula os juros para aumentar seus lucros já fabulosos.
Nos bastidores da política, um deputado esconde nas meias um maço de dinheiro, fruto da última propina. No sacolão da esquina, o comerciante usa uma balança fraudada para ganhar 10% a mais em cada venda.
Na licitação, as empreiteiras se organizam para garantir o máximo de lucros com o mínimo de despesas. A merenda escolar é uma no papel, outra à mesa dos estudantes. O material cotado para a construção de um viaduto é um na planilha e outro, mais barato e de qualidade inferior, no canteiro de obras.
Ações e personagens diferentes, atitudes e sentimentos absolutamente iguais...
O mecanismo que produz o ganancioso é parecido com o que gera o dependente químico. Não há nenhum problema em consumir uma latinha de cerveja. O problema está em ser “consumido” por ela.
Não é por acaso que, na nomenclatura do Mercado, somos chamados de consumidores...
Corajosamente, a Campanha da Fraternidade desse ano toca num ponto crucial. Estamos numa fronteira, numa encruzilhada da História. Não podemos mesmo servir a senhores tão conflitantes. Aqui, uma certa dose de maniqueísmo é quase inevitável:
Servir ao lucro imediato ou pensar práticas industriais e comerciais sustentáveis?
Aumentar o abismo social ou repartir de forma mais justa e digna os bens, entre todos?
Estocar ou compartilhar?
Competição predatória ou respeito ao semelhante?
Deus (Amor) ou o dinheiro (Egoísmo)?
Para ilustrar essa reflexão, compartilho com vocês uma experiência de oração/leitura contemplativa que vivi, inspirada em Mateus 19,16-26

...Jesus deixou Betânia e atravessou a região da Peréia com seus amigos. Iam em direção ao Mar da Galiléia, lugar onde vários deles haviam nascido.
Muitas outras pessoas os seguiam e cada vez que paravam para descansar ou buscar alimento em alguma aldeia, a multidão os cercava, ansiosa por ouvi-lo, falar com Ele ou simplesmente tocá-lo. Conhecendo sua fama, traziam doentes para que Ele os curasse.
À entrada de uma dessas aldeias, em meio à multidão que deixava os apóstolos agitados e nervosos, um jovem bem vestido aproximou-se de Jesus e disse:
- “Bom Mestre, que devo fazer para ser feliz e alcançar a vida eterna?”
Jesus voltou-se curioso para quem lhe fazia tal pergunta. Olhou para o jovem com interesse. Todos ao redor se calaram, na expectativa da resposta. Colocou no chão uma criança que segurava nos braços e aproximou-se do rapaz. Sorrindo, disse:
- “Por que você me chama de bom? Apenas Deus é bom. Ele já lhe deixou seus mandamentos. Cumpra-os e serás feliz nesta vida e na que virá.”
O jovem insistiu:
- “Mas quais mandamentos, Mestre?”
- “Você os conhece. Estão na Lei de Moisés. Não mates, não cometas adultério, não furtes, não digas falso testemunho contra teu irmão, não enganes, honra o teu pai e tua mãe...”
“Eu sei, Senhor - disse o jovem - tudo isso tenho cumprido desde a minha juventude”.
Jesus, que já havia se afastado alguns passos, voltou-se para o jovem. Aproximou-se dele, colocou as duas mãos sobre seus ombros, e fixando seus olhos com amor, disse:
“Pois então, meu filho, só uma coisa te falta; vai, vende tudo o que tens e distribui entre os pobres, pois assim terás um tesouro no céu. Depois vem e segue-me!”
Pedro cochichou com João: “Mais um louco para o nosso bando. Agora vamos ser treze...”
Mas o jovem, olhando espantado para Jesus, deu dois passos atrás como se aquelas palavras o houvessem ferido. Numa fração de segundo todos os bens que possuía; casas, terras, rebanhos, criados, roupas finas, tudo passou pela sua mente. Apesar de jovem, era um homem muito rico.
Triste, ele baixou os olhos, deu as costas e foi-se embora, misturando-se à multidão.
Vendo o jovem afastar-se, Jesus sentiu uma profunda tristeza em seu coração. Pensou em chamá-lo, dizer que sua proposta fora, quem sabe, exagerada, radical, mas o rapaz já desaparecera no meio do povo.
Jesus sentou-se à soleira de uma porta e todos o cercaram, ainda em silêncio. Eu me aproximei, ficando bem perto dele.
Olhando para nós, falou como se pensasse em voz alta:
“Preciso ter mais cuidado com as palavras. Realmente são poucas as pessoas dispostas a abrir mão de suas certezas e seguranças por causa do Reino. Como deixar tudo por uma vida incerta, em especial para os que tem muito a deixar...?
Seus olhos percorreram novamente a multidão que o cercava, ávida por milagres, e, no seu semblante, a tristeza se aprofundou.
Nesse instante, um tumulto chamou a atenção de todos. Uma caravana entrava pela porta da aldeia. Era uma porta estreita, aberta na muralha, uma pequena torre com uma cúpula que se afinava num minarete, e que era chamada de “agulha”. Um grande camelo, carregado de mercadorias era puxado pelo condutor que tentava fazê-lo passar pela estreita abertura.
O camelo empacava, recuava, enquanto o homem usava sem piedade o seu chicote. Por fim, num arranco furioso, o animal jogou ao chão toda a carga que levava às costas e fugiu em disparada deixando o mercador a praguejar raivosamente.
Vendo a cena, Jesus disse: “Seria mais fácil passar aquele camelo pela abertura da agulha que um rico entrar no Reino dos Céus”.
Todos os que ouviram aquelas palavras se entreolhavam admirados. Eu criei coragem e perguntei:
- Mas então, mestre, quem poderá conquistar a vida eterna?
Jesus, olhando para mim, depois para todos, numa voz quase inaudível, como se fosse um suspiro, disse:
- “Entre os homens é impossível, mas para Deus nada é impossível...

Acompanho o jovem que se afasta, perdendo-se no meio da multidão. Seu gesto me faz pensar em minhas próprias escolhas. A quem serve o meu coração?
Volto-me e dou de cara com o semblante triste de Jesus. Seus olhos, fixos em mim, parecem me dizer:
Nas minhas contas, os apóstolos seriam treze...


Eduardo Machado
Fevereiro de 2010

Nenhum comentário: